Seja ao nível da crença ou, mais extraordinariamente, do comportamento, hoje em dia muitos humanos concordam com o cosmopolitismo moral, que se deixa definir pela conjunção das três seguintes teses [conforme delineadas por Pogge 1992]: individualismo ético, de acordo com o qual são indivíduos (e não grupos) que deverão figurar como unidades últimas de preocupação moral, de tal forma que grupos ou identidades socioculturais importam somente em segunda ordem; universalismo quanto ao estatuto moral, de acordo com o qual todos os seres humanos são unidades últimas de preocupação moral, independentemente das suas identidades socioculturais (sejam elas demarcadas por identidade religiosa, nacionalidade, etnia, ou qualquer outra identidade de grupo); e, por fim, generalidade quanto à aplicação das duas primeiras teses, ou seja, que todos os seres humanos as deverão respeitar. A sua concordância expressa-se desde há pelo menos dois mil anos, sendo notável no pensamento de cínicos e estoicos, assim como em demais expressões de motivação religiosa, e mais recentemente na figura da lei internacional dos direitos humanos (e.g. conforme a DUDH), entre muitas outras, tendo se tornado tão comum entre o círculo de estudiosos da justiça global que poucos discordarão de Michael Blake quando ele diz que “agora somos todos cosmopolitas” [Blake 2013].
Porém, historicamente, o cosmopolitismo moral como acima descrito teve muitos opositores de índole conservadora e nacionalista; estes acreditavam que os humanos não eram capazes de agir conforme as três teses do cosmopolitismo moral, de tal forma que rejeitavam o cosmopolitismo com base na acusação de que este violava a razão Kantiana de que aquilo que deve ser tem de poder ser. Mas as teorias do direito natural invocadas pelos críticos foram severamente (e correctamente) criticadas como “absurdidades a andar de andas” (nonsense upon stilts) – para usar uma metáfora de Bentham [1789]. Contudo, as ciências da evolução social têm vindo a desenvolver-se sem precedentes e novas críticas conservadoras do cosmopolitismo têm-se vindo a firmar sobre teorias cientificamente mais respeitáveis da natureza humana. É destes estudos que advém o chamado desafio evo-conservador ao cosmopolitismo moral (adoptando o termo de Buchanan & Powell [2015]).
O desafio evo-conservador começa por tomar como verdadeira a teoria cooperativa da evolução moral de acordo com a qual os comportamentos morais são altruístas ou cooperativos, tendo evoluído por selecção natural por conferirem vantagens sociais [e.g. Darwin 1870; Kropotkin 1902; Boehm 1992; Sober & Wilson 1999; Joyce 2005; Wong 2006; Copp 2009; Haidt & Kesebir 2010; Kitcher 2011; Rai and Fiske 2011; Brosnan 2011; Bowles & Gintis 2011; Tomasello & Vaish 2013; Greene 2013 & 2015; Curry et al. 2016; Sterelny & Fraser 2016]. Mais que isto, os evo-conservadores admitem que as vantagens sociais conferidas pela moral são sobretudo vantagens para os genes ou para o grupo como um todo, de tal forma que a evolução da moral se deixa entender sobretudo pela teoria da fitness/aptidão inclusiva ou pela teoria da selecção de grupos, respectivamente. É então porque a moral evoluiu sobretudo devido à acção da selecção de parentesco ou de grupos que as nossas disposições morais são sobretudo familiares ou paroquiais (grupais), com a consequência de que a moral cosmopolita, que recusa discriminação com base em grupos de pertença (na motivação de um qualquer viés ou na permissão de tratamento preferencial), não é uma moral para a qual tenhamos evoluído.
Como é óbvio, este argumento evo-conservador é indefensável se a sua conclusão for entendida stricto sensu como querendo dizer que nenhum humano pode expressar o cosmopolitismo. Portanto, os evo-conservadores não dizem que não estamos inteiramente munidos da capacidade de expressar o cosmopolitismo, mas pretendem ao invés concluir que qualquer capacidade de expressão cosmopolita – cuja evolução até hoje só conseguiram explicar como um sub-produto desvantajoso da evolução paroquial –, é fraquíssima face às nossas fortes tendências paroquiais, de tal forma que projectos cosmopolitas tenderão sempre a falhar [e.g. Fukuyama 2002, Arnhart 2005, Goldsmith & Posner 2005, Asma 2012, & Haidt 2012]. Uma revisão do estado da arte permite a inferência de que existem muitos desafios evo-conservadores, pelo menos tantos quantas as diferentes hipóteses evolutivas acerca da moral, e com conclusões mais ou menos radicais. De facto, especulamos que enquanto não houver consenso acerca da história natural da moral humana ou mesmo enquanto não houver uma ética evolutiva unificada poderemos esperar que diferentes argumentos evo-conservadores e respostas continuarão a ser apresentadas.
Nesta apresentação contribuímos para esta panóplia de argumentos introduzindo um novo desafio evo-conservador que, pela primeira vez na literatura, inclui uma teoria de quando o cosmopolitismo moral evolui, reconhecendo ainda maiores nuances no debate que têm por motivação uma nova teoria evolutiva do desenvolvimento da psicologia moral. Introduziremos, pois, a teoria bio-cultural de Henrich [2020], que procura explicar como o Ocidente se tornou tão peculiar e estranho no sentido em que as populações ocidentais, educadas, industrializadas, ricas, e democráticas (“Western, Educated, Industrialized, Rich, and Democratic”, sob o acrónimo WEIRD) costumam ocupar extremos de distribuições normais em estatísticas holoculturais. De acordo com Henrich, a capacidade dos humanos expressarem uma moral caracterizada pelas teses do individualismo ético e do universalismo quanto ao estatuto moral deve-se a uma contingência histórica provocada acidentalmente e inicialmente pela Igreja Católica: um programa de casamentos monogâmicos e planeamento familiar que exclui até casamentos entre primos de terceiro grau e mais distantes.
A evidência e as diversas análises estatísticas dos variados grupos de investigação que Henrich expõe deverão ocupar-nos durante alguns anos, mas o racional plausível por detrás da sua hipótese é o seguinte: para o controlo do seu bem-estar e poder, os seres humanos dependeram até recentemente de extensas redes de parentesco nas quais poderiam depositar a sua confiança para resolver os problemas de cooperação que se lhes avizinharam; com a negação dessa possibilidade, os demais indivíduos tiveram de recorrer a outros indivíduos por sua própria volição e de acordo com a reputação dos potenciais parceiros; este regime, assim como a proliferação de mercados, promove o desenvolvimento psicológico de uma maior disposição para o individualismo ético e o universalismo, condições necessárias para o sucesso da cooperação fora das extensas redes de parentesco que caracterizaram a maioria da história da humanidade e que subsistem ainda fora das nossas estranhas sociedades ocidentais.
O desafio evo-conservador surge no contexto desta hipótese bio-cultural na seguinte forma: o desenvolvimento de uma forte disposição para o comportamento moral cosmopolita está dependente de uma longa exposição a uma instituição cultural que foi ainda insuficiente ou é inexistente entre a maioria da população mundial (apesar do processo de globalização), de tal forma que a maioria da população não desenvolve uma psicologia com fortes inclinações individualistas e universalistas das quais é dependente o comportamento cosmopolita, inviabilizando a tese da generalidade. Todavia, a hipótese identifica algumas condições que podem ser realizadas para que o projecto cosmopolita possa ter sucesso global. Finalizaremos a apresentação com alguns comentários acerca do significado desta abordagem.
Comunicação Internacional
Um Novo Desafio Evo-conservador à Generalização do Cosmopolitismo com Base na sua Estranheza
Colóquio luso-brasileiro "Evolução Bio-Cultural, Moral e Política"
Organização:
CFCUL
Videoconferência
17 / 07 / 2021
Resumo: