António Bracinha Vieira (CFCUL/GI3) é autor do livro “Viagem pelo Brasil, 1999-2000”, Companhia das Ilhas, 2021.
Evocar emoções esquecidas suscita um novo estranhamento. Este Brasil rememorado, de há pouco mais de vinte anos, ressurge-me a partir de fragmentos, janelas estreitas abertas sobre um tempo volvido, por onde voltam sensações antigas — ir pela memória é como seguir pelo chão da floresta: na obscuridade pulsam manchas cintilantes, a distância imprecisa, que a penumbra envolve e julgamos ver e decifrar pontos vivos por entre um vasto mundo oculto.
Excerto
Há que caminhar sem fazer ruído. Do alto vêm sons de aves, que parecem sopros em tubos sonoros de várias espessuras, tocados com mestria; os ruídos dos anfíbios são como roncos saídos da terra; os dos insectos espalham crepitações ásperas; restolhos no chão florestal indicam porventura a fuga de algum réptil cuja imagem se furta ao nosso olhar.
Paramos, atentos ao canto antifonal de aves invisíveis: uma delas vocaliza de um lugar incerto; passam uns segundos e o parceiro responde de longe, em parada de corte. Fixamos o ponto exacto de onde provém o som — mas como encontrar o cantor, perdido na densidade, no emaranhamento de tons verdes? Martinho sussurra-nos a história de um pássaro de plumagem verde que canta entre a folhagem e nunca ninguém viu!
As histórias da floresta, de tão prodigiosas, são da matéria já das fábulas e mitos. E recordamo-nos da lenda da pequena ave da floresta, suposta invisível mas de canto inefável, que inspirou Villa-Lobos na sua obra O Uirapuru, que tira o seu nome de um pássaro canoro bem real (Cyphorhinus aradus).
Qualquer atenção concedida a uma parte do todo florestal revela formas insuspeitadas de seres vivos: em frestas de madeira apodrecida proliferam pequenos cogumelos, inclinando a uníssono os seus pés delicados; num sulco do alburno de uma sumaumeira (Ceiba pentandra), aranhas tecem teias onde se prendem moscas; procurando na escala logo abaixo, miríades de insectos minúsculos correm sobre folhas e lianas. E se olhássemos com lupa, e depois com microscópio, desvendaríamos novas e sucessivas camadas de viventes.